História da Arte |
BURKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Cia das Letras.1991
O REDESPERTAR DA ANTIGUIDADE
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
É pela influência da Antigüidade que está a essência das coisas, é só com e através dela que sua expressão adquiriu vida. O Renascimento não teria configurado na elevada e universal necessidade histórica que foi se pudesse abstrair tão facilmente dessa Antigüidade. Nesse ponto temos de insistir, como uma proposição central deste livro; não foi a Antigüidade sozinha, mas sua estreita ligação com o espírito italiano, presente a seu lado, que sujeitou o mundo ocidental.
O Ocidente pôde estudar de que maneira repelir o impulso proveniente da Itália, ou como se apropriar total ou parcial dele. Os que se apropriaram dele viram o declínio precoce de suas concepções e manifestações culturais medievais.
O Renascimento foi um processo que, paralelamente a igreja, que até então mantivera o Ocidente coeso, fez surgir uma nova força espiritual atingindo todo o europeu de maior instrução. É, portanto, um processo de caráter não popular, separando cultos e incultos em toda a Europa. Apesar disso ser percebido claramente há muito tempo, esta separação persiste inalterada até os dias de hoje.
A pompa renascentista - Antonio Caron
A Antigüidade greco-romana exerceu desde o século XIV, influência parcial sobre toda a Idade Média inclusive fora da Itália, isto enquanto suporte e base da cultura, enquanto meta e ideal da existência.
O Renascimento influenciou todo o Ocidente, porém na Itália, diferentemente do que ocorre no Norte, a Antigüidade despertava novamente. O povo ainda permanecia parcialmente ligado a ela, uma vez que esta constitui ali a lembrança da grandeza de outrora. Fora da Itália, os elementos isolados da Antigüidade são utilizados de forma refletida.
O antigo se manifesta nas artes plásticas, nas edificações toscanas do século XII e em suas esculturas do século XIII. Canções escritas no século XII também mostram o Renascimento da visão de mundo dos antigos, tornada ainda mais evidente pelo uso da rima medieval (Carmina burana, De Phyllide et Flora, o Aestuans Interius, Dum Dianai vítrea sero lampas uritur).
Diversas obras do século XII e XIII exibem uma cuidadosa imitação de obras pertencentes à Antigüidade, porém não produzem, de modo algum, a impressão do antigo. O Renascimento não significa imitação ou compilação fragmentária, mas sim o nascer de novo, e este nascer de novo encontra-se nos poemas do clericus desconhecido do século XII.
O nascimento de Vênus - Sandro Botticelli
A grande tomada de partido dos italianos pela Antigüidade começa, no entanto, apenas no século XIV. Para isto houve o desenvolvimento da vida municipal: a convivência sob um mesmo teto e a afetiva igualdade entre nobres e burgueses; a formação de um meio social comum que sentia a necessidade de educar-se e dispunha de tempo e meio para tanto. Para libertar-se das fantasias do mundo medieval a Antigüidade clássica serviu de guia, com toda sua bagagem de verdades objetivas e luminosas em todas as áreas do conhecimento. Tornou-se conteúdo central de toda a educação. A situação geral da Itália era favorável a isso. O império medieval, desde o declínio dos Hohenstaufen, renunciara a ela; o papado transferira-se para Avignon, e os poderes efetivamente existentes eram, em grande parte, ilegítimos e violentos. O espírito que despertou na imaginação popular foi o de uma nova dominação mundial romano-italiana. Este intento foi buscado de forma prática, através da figura de Cola di Rienzi, o que resultou numa comédia estrambólica. Apesar disso, armados novamente de sua cultura, os italianos logo se sentiram, de fato, a mais avançada nação do mundo.
O porto de Nápoles
AS RUÍNAS DE ROMA
Mesmo em ruínas Roma é reverenciada. Uma reverência diferente daquela dos tempos da Roma maravilhosa. Dante afirma que as pedras das muralhas de Roma são merecedoras de reverência, e o chão sobre o qual a cidade foi construída é mais digno do que dizem os homens. Petrarca e Giovanni Colonna conversavam sobre a história de Roma. Petrarca posicionava-se mais pela Antigüidade clássica e Giovanni mais pela cristã. Petrarca dá-nos a conhecer este espírito dividido entre as Antigüidades clássica e cristã. Givanni Villani, Gibbon, Niehbur também foram autores acometidos pela contemplação histórica das ruínas. Fazio degli Uberti em seu Dittamondo também tem a mesma visão dividida da Antigüidade.
Ruínas de Roma
No tocante ao legado da Antigüidade, a Roma dos papas cismáticos de Avignon já não era nem de longe o que fora há algumas gerações. Por volta de 1258, devido ao Senador Brancaleone, 140 casas fortificadas pertencentes aos grandes de Roma foram demolidas. Do que permaneceu de pé, hoje só resta apenas a estrutura de pedra. A partir daí é que teve início, então, um sério levantamento topográfico da velha cidade. Poggio foi o primeiro autor a realizar estudos das ruínas e relacioná-lo com o dos antigos autores e inscrições. O estudo recebe um tratamento que repele a fantasia e afasta a memória da Roma cristã. O mármore utilizado nas construções romanas deteriora-se rapidamente pelo processo de calcinação, conseqüentemente a deterioração das ruínas ocorre rapidamente.
Os romanos da época pareciam meros vaqueiros aos forasteiros, pois vestiam-se em seus rústicos casacos e botas. As idas à igreja, em ocasiões determinadas, constituíam a única modalidade de convívio social. Blondus de Forli, nos últimos anos do pontificado de Eugênio IV (morto em 1447), escreveu Roma instaurata, valendo-se de outros autores e escritos. Seu objetivo era a investigação do que perecera.
Com Nicolau V (1447-1455), ascende ao trono papal o novo e monumental espírito peculiar do Renascimento.
Pio II revela-se muito interessado pelo antigo, porém pouco fala das antiguidades de Roma. Em compensação dedica sua atenção às antiguidades do restante da Itália, sendo o primeiro a descrever com exatidão as da circunvizinhança mais longínqua da cidade. Interessam-no, em igual medida os monumentos clássicos e cristãos, bem como as maravilhas da natureza. Procurou determinar as fronteiras das antigas povoações ao redor de Roma. A Pio II, Blandus dedicou sua Roma triunphans, a primeira grande tentativa de apresentar a Antigüidade romana em sua totalidade.
Enéias Silvio - Pio II, afresco de Pinturicchio
Por essa época, o entusiasmo pela Antigüidade romana encontrava-se desperto por toda a Itália. Coletâneas de antiguidades de todos os gêneros já haviam surgido. Ciríaco de Ancona percorreu não apenas a Itália, mas também outras terras da antiga orbis terrarum, trazendo consigo abundantes inscrições e desenhos. Desde sempre, as histórias das diversas cidades aludiam a um verdadeiro ou pretenso vínculo com Roma, à sua fundação direta ou colonização a partir dali. Sob Paulo II, Sisto IV e Alexandre VI assistiremos a pomposos cortejos carnavalescos representando a fantasia predileta daqueles tempos: o triunfo dos antigos imperadores romanos.
Em decorrência das escavações, crescera o conhecimento objetivo acerca da antiga Roma. Sob Alexandre VI, foram descobertos os assim chamados grotescos (decorações de muros e abóbadas dos antigos) e encontrou-se, em porto d'Anzio, o Apolo de Belvedere. Sob Júlio II, seguiram-se as descobertas do Laocoonte, da Vênus do Vaticano, do Torso e de Cleópatra, entre outras.
Rafael executou para Leão X a restauração ideal de toda a Roma antiga. Munido de notável perspicácia, fixa a base para uma história comparada da arte, concluindo com aquele conceito de registro arquitetônico desde então vigente: de cada edificação remanescente, ele exige planta, elevação e corte, em separado.
No Vaticano, durante o pontificado de Leão X, ressoavam o canto e os instrumentos de corda, ecoando por toda Roma como uma conclamação à alegria de viver. Paolo Giovio retrata a imagem de uma Roma resplandecente de Leão X. Porém pesa igualmente o testemunho preciso do lado sombrio da cidade: o servilismo dos que almejavam ascender, a miséria oculta dos prelados - que, a despeito de suas dívidas, tinham que viver de acordo com sua posição -, a arbitrariedade e o caráter fortuito do mecenato literário do papa e, finalmente, sua administração financeira absolutamente ruinosa.
Além do fervor arqueológico e da atmosfera solenemente patriótica, as ruínas em si despertaram também, dentro e fora de Roma, um ardor elegíaco-sentimental. Em Polifilo, de Pio II, surge a primeira imagem ideal das ruínas, acompanhada de uma descrição: restos de portentosas abóbadas e colunatas entremeados por antigos plátanos, loureiros, ciprestes e por um selvagem matagal.
OS AUTORES DA ANTIGÜIDADE
Mais importante do que os restos arquitetônicos e artísticos da Antigüidade foram, naturalmente, os legados escritos, tanto em grego quanto em latim. Estes eram tidos como as próprias fontes de todo o conhecimento, no sentido mais absoluto.
Por maior que pareça a influência dos escritores antigos sobre a Itália, na verdade, o número de novas descobertas foi menor do que o de obras já bastante conhecidas propagando-se por numerosas mãos. Com a ajuda de um grego da Calábria, Boccaccio logrou, na medida do possível, produzir a primeira tradução para o latim da Ilíada e da Odisséia. É apenas no século XV que tem início a grande série de novas descobertas, a criação sistemática de bibliotecas por meio de cópias e o mais fervoroso esforço de tradução a partir do grego.
Sem o entusiasmo de alguns colecionadores de então, cujo esmero chegava à mais extrema abnegação, nós certamente disporíamos hoje apenas de pequena parte das obras, sobretudo as dos gregos, que chegaram até nós. Ainda quando monge, o papa Nicolau V endividou-se para comprar manuscritos ou mandar copiá-los; já naquela época, ele professava abertamente as duas grandes paixões do Renascimento: os livros e as edificações. Apesar de morrer prematuramente, Nicolau V deixou 5 mil volumes - ou 9 mil, dependendo da maneira como se calcula - para uma biblioteca criada para uso efetivo de todos os membros da cúria, biblioteca esta que se tornou o núcleo da biblioteca do Vaticano e que seria instalada no próprio palácio, na qualidade de seu mais nobre adorno, como outrora o fizera o rei Ptolomeu Filadelfo de Alexandria.
O florentino Niccolo Niccoli, membro do ilustrado círculo de amigos que se reunia em torno do já idoso Cosme de Medici, aplicou toda a sua fortuna na aquisição de livros. Após sua morte, sua coleção de oitocentos volumes, avaliada em 6 mil florins de ouro, transferiu-se, graças à intermediação de Cosme, para o convento de São Marcos, sob a condição de que fosse aberta ao público.
A biblioteca de Urbino (hoje no Vaticano) foi obra do grande Frederico de Montefeltro, que ainda na infância começou a compilá-la. Mais tarde, teve sempre de trinta a quarenta scrittori em diversos locais a seu serviço e, ao longo dos anos, empregou nela acima de 30 mil ducados. Graças, sobretudo à ajuda de Vespasiano, tal biblioteca foi sistematicamente ampliada e complementada, e o que ele relata a seu respeito é particularmente notável enquanto concepção ideal de uma biblioteca de época. Na quantidade, predominavam talvez as obras da Idade Média e as de teologia; encontrava-se ali toda a obra de São Tomás de Aquino, de Alberto Magno, de Bonaventura e assim por diante. Além de todas as obras de medicina disponíveis, figuravam com destaque os grandes autores do século XIV, como Dante e Boccaccio; a seguir, vinham 25 humanistas selecionados, sempre com suas obras em latim e em italiano. Dentre os manuscritos gregos, predominavam em larga escala os patriarcas da Igreja, mas no tocante aos clássicos havia ali, de uma só vez, as obras completas de Sófocles, as de Píndaro e as de Menandro.
A compra direta de um manuscrito mais antigo, que contivesse um texto raro ou o único completo ou mesmo o único existente de um autor da Antigüidade, era naturalmente, uma dádiva rara de sorte, com a qual não se contava.
A caligrafia de tais volumes era aquela bela e moderna caligrafia italiana, que faz já da mera visão de um livro dessa época um prazer e cujo emprego teve início ainda no século XIV. Tanto o para Nicolau V quanto Poggio, Giannozzo Manetti, Niccolò Niccoli e outros eruditos de renome eram calígrafos já de casa, exigindo e tolerando apenas o belo. Quando a cópia era feita para grandes senhores, o material utilizado era sempre o pergaminho; a encadernação, na biblioteca do Vaticano e na de Urbino, feita uniformemente em um veludo carmesim com guarnições prateadas. Em face de uma tal disposição de desejar trazer à luz o respeito pelo conteúdo dos livros conferindo-lhes a aparência mais nobre possível, é compreensível que o súbito surgimento do livro impresso tenha, inicialmente, esbarrado em resistências.
Apesar do júbilo dos copistas em relação à invenção alemã, constituem-se aí os rudimentos da relação moderna entre autor e editoria, e, sob Alexandre VI, surge a censura preventiva.
No tocante aos gregos, a erudição concentra-se, essencialmente, em Florença e no século XV e no início do XVI. O que Petrarca e Boccaccio haviam impulsionado parece ainda não ter ido além da simpatia de alguns diletantes entusiasmados. De outra parte, com o desaparecimento da colônia de refugiados gregos eruditos, morre também, na década de 1520, o estudo do grego, constituindo uma verdadeira sorte que, no Norte, nesse meio tempo, alguns houvessem já logrado dominar aquela língua (Erasmo, os Estienne, Budé).
Que o declínio dos estudos helenísticos, de um modo geral, coincida aproximadamente com a morte de Leão X, deveu-se por certo em parte a uma mudança da tendência intelectual como um todo, e à já presente relativa saturação no tocante à literatura clássica.
Os estudos helenísticos tiveram uma dívida imensa para com Aldo Manucci, em cuja oficina foram impressas, pela primeira vez em grego, as obras mais volumosas e dos principais autores.
Ao lado dos estudos clássicos, também os orientais assumiram proporções relativamente significativas. Giannozzo Manetti, estadista e grande erudito florentino (morto em 1459), foi o primeiro a aliar à polêmica dogmática contra os judeus o aprendizado do hebraico e de toda a ciência judaica. Muito antes de Reuchlin, mais de uma humanista acolheu o hebraico entre seus estudos; Pico della Mirandola, por exemplo, dispunha de todo o saber talmúdico e filosófico de um instruído rabino. Quanto ao árabe, era, sobretudo, a medicina que, não mais desejava dar-se por satisfeita com as traduções mais antigas dos grandes médicos árabes, requeria seu aprendizado.
Pico della Mirandola foi o único a defender em voz alta e de maneira enérgica a ciência e a verdade de todas as épocas contra a ênfase unilateral dada à Antigüidade clássica. Possuidor de um vigoroso latim, absolutamente não desprovido de beleza, e clareza de exposição, Pico della Mirandola despreza o purismo pedante e toda a supervalorização de uma forma tomada emprestada, tanto mais quando ela se revela associada a uma visão unilateral e danosa à grande e total verdade. Nele, pode-se perceber o rumo sublime que a filosofia italiana teria tomado, se a Contra-Reforma não tivesse destruído a totalidade da vida espiritual mais elevada.
Graças ao esforço de pessoas realmente interessadas em preservar a cultura literária de uma época das mais importantes no panorama histórico-cultural de todos os tempos, podemos ainda hoje dispor de um acervo considerável no que diz respeito às grandes obras da Antigüidade.
O trabalho entusiasmado de pessoas que acreditavam na importância dessas obras, sua abnegação em trazer à luz o conhecimento acumulado em muitos anos de produção literária e, acima de tudo, o investimento financeiro aplicado a essa causa, nos dá um panorama geral das concepções literárias desse período.
O HUMANISMO NO SÉCULO XIV
Para Jacob Burckhardt os humanistas desempenham o papel de intermediários entre a sua época e a venerada Antigüidade, formando um elemento novo na sociedade.
Seus representantes tornaram-se pessoas importantes, porque procuravam escrever, pensar e sentir como faziam os antigos, colocando em evidência uma nova cultura que vai se opor àquela cultivada por eclesiásticos.
Apesar de alguns autores modernos lamentarem a grande onda humanista (pois acreditavam que uma cultura mais autônoma e italiana em sua essência, que se desenvolveu em Florença por volta de 1300, foi soterrada por essa nova tendência), esta corrente se consolidou fazendo emergir gênios como Dante (Divina Comédia, situando o mundo antigo e cristão em planos paralelos).
Petrarca (imitando todos os gêneros da poesia latina apresentando a Antigüidade em pessoa) e Boccaccio, com o seu Decameron, combatendo teólogos sofistas e os frívolos ignorantes. Surge assim a primeira geração de poetas-filólogos (tendo como convicção que a Antigüidade consistia a mais alta glória da nação italiana) que são coroados com louros em demonstrações públicas. Dante considerava este ritual como uma consagração semi-religiosa, quis coroar-se a si próprio no batistério de San Giovanni (onde centenas de milhares de florentinos haviam sido batizados). Petrarca foi coroado no Capitólio pelo senador romano.
O erudito Florentino Zanobi della Strada recebeu a coroação de Carlos IV, para desgosto de Boccaccio. Imperadores em viagem coroavam poetas aqui e ali, prática à qual aderiram no século XV, os papas e outros príncipes. Já os florentinos tiveram o cuidado de coroar seus famosos humanistas após sua morte.
UNIVERSIDADES E ESCOLAS
A maioria das universidades italianas só surge verdadeiramente no decorrer dos séculos XIII e XIV. No princípio, a maioria delas possuía apenas três cátedras: as de direito canônico, civil e de medicina. A estas se juntaram com o passar do tempo, as de retórica, de filosofia e de astronomia. Os salários dos professores eram muito variados, às vezes, recebiam até algum capital de presente. O avanço da educação trouxe consigo a competição, então algumas instituições faziam de tudo para atrair para si catedráticos renomados. Como as nomeações eram por tempo limitado, os docentes levavam uma vida errante, como se fossem atores. Contudo havia também contratações vitalícias (às vezes, prometiam não ensinar em qualquer outro lugar o que haviam ensinado em uma universidade). Além disso, havia professores voluntários, não remunerados.
A cátedra de retórica era a meta preferencial de humanistas, mas também tinham a possibilidade de atuarem como professores de direito, medicina, filosofia ou astronomia, dependendo em grande parte do conhecimento que haviam adquirido das coisas da Antigüidade. Os médicos e juristas tinham e mantinham os salários mais elevados. A atividade do filólogo, enquanto tal, embora vinculada a salários relativamente elevados e gratificações, configurava-se em geral fugaz e passageira, podendo um mesmo catedrático atuar em toda uma série de instituições diferentes. Nota-se que o modo pelo qual o conhecimento científico era transmitido e das dificuldades (uso constante do latim, do grego, mudanças de professores, raridade de livros), difere muito da nossa realidade, sendo estas escolas mantidas pela administração municipal, e não pela igreja.
Esse sistema escolar (tendo na direção alguns notáveis humanistas) atingiu uma grande perfeição organizacional, mas também o instrumento de uma educação mais elevada.
Em duas casas principescas da alta Itália, a educação das crianças esteve associada a instituições únicas em seu gênero.
Vittorino da Feltre (Mântua) e Guarino de Verona, entre outros, foram os humanistas que por muito tempo estiveram à frente da educação dos filhos dos príncipes.
Portanto, a escritura de tratados acerca da educação dos príncipes, outrora tarefa dos teólogos, agora passa também a ser assunto dos humanistas.
OS PROMOTORES DO HUMANISMO
Cidadãos principalmente Florença se interessam pela Antigüidade tornando-se eruditos, fazendo com que nos séculos XV, o humanismo manifestasse como um elemento importante naquele contexto. Esta preocupação emergente vai criando cidadãos intelectualmente preparados.
Há o surgimento de vários lideres em diferentes áreas como na educação, política e demais ciências. Cosme foi um deles, estimulando um renascer da Antigüidade no interior do humanismo.
Há um surgimento de diferentes correntes, sendo que o famoso grupo de eruditos reunidos ao redor de Lourenço tinha em comum vínculos da filosofia idealista, sendo que este fator os diferenciou dos demais.
Sem dúvida percebemos um reconhecimento do valor da cultura e da Antigüidade em particular. Este espírito também esteve bem presente junto aos florentinos do século XV e princípios do século XVI. Prova disto é o fato de que até "as filhas da casa" tomaram parte nos estudos.
Várias cidades italianas também exerceram importante influência frente ao humanismo pois o pensamento oficial das camadas mais cultas tendia quase exclusivamente para mesma direção.
A Igreja viu-se de modo geral tranqüila quanto a erudição das pessoas tendo assim ao seu lado inúmeros eruditos. Alguns papas inclusive foram decisivos no incentivo ao humanismo como Leão X. Também os príncipes desta época eram inseparáveis do interesse pelo erudito e pela Antigüidade.
A REPRODUÇÃO DA ANTIGÜIDADE
EPISTOLOGRAFIA
Tanto repúblicas quanto príncipes e papas julgavam não poder prescindir do humanista: para a redação das cartas, discursos públicos e solenes.
A cultura e o talento necessários a um secretário eram atribuídos unicamente ao humanista. No século XV a maioria dos grandes homens da ciência dedicaram considerável parte de suas vidas a serviço do Estado. Dos quatro grandes secretários florentinos que estiveram nesse cargo entre 1429 e 1465, três são oriundos da cidade de Arezzo: Leonardo (Bruni), Carlo (Marzupini) e Beneditto Accolti, Poggio era de Terra Nuova.Vários dos cargos mais altos, cargos estatais eram em princípio preenchidos por estrangeiros. Leonardo, Poggio e Giannozzo Manetti foram temporariamente secretários particulares dos papas, após outros também alcançaram esta posição.
Os príncipes instruídos, que tinham o dom da palavra, apreciavam discursar em latim ou em italiano. A cada recepção solene, eram alvo de discursos que, estendiam-se por horas. Todos os demais eventos políticos são também avidamente aproveitados para o exercício da oratória. A cada renovação anual do quadro de funcionários, a cada posse de um bispo, apresentava-se algum humanista discursando.
Dos aniversários são celebrados particularmente os da morte dos príncipes, lembrados com discursos comemorativos. As orações fúnebres cabem, predominantemente, ao humanista, que as proferia na igreja. O mesmo acontece com os discursos por ocasião de noivados e casamentos, com a diferença que estes não eram proferidos na igreja, mas no palácio.
Dos discursos acadêmicos, pronunciados pelos professores, por ocasião de sua posse ou o início de um curso, são tratados com toda a pompa da retórica.
Quanto aos advogados, eram os diferentes públicos que conferiam a seus discursos, dependendo das circunstâncias, estes eram providos de toda a pompa da filosofia e da Antigüidade.
Um gênero inteiramente próprio compõe os discursos em italiano dirigidos aos soldados, antes ou depois das batalhas, Frederico de Urbino nestes era um clássico. Pertencem a outra categoria os discursos dirigidos a partir de 1506, à milícia florentina, organizada, sobretudo sob a influência de Maquiavel. Seu conteúdo é de patriotismo genérico, e eles são proferidos nas diferentes igrejas da cidade, diante das milícias ali reunidas.
No século XV, o sermão propriamente dito por vezes mal permite que se lhe diferencie do discurso. Neste período os pregadores são em geral os monges.
O dom natural do bem falar não terá faltado aos italianos ao longo de toda a Idade Média, e a "retórica" sempre contou entre as sete artes liberais. Da ressurreição do método dos antigos, o mérito deve ser atribuído segundo afirma Filippo Villani, a um florentino chamado Bruno Casini. Ele segundo o molde dos antigos, abordou a invenção, a declamação, a gesticulação e a postura, cada uma dentro de seu próprio contexto.
O estudo crescente dos discursos e escritos teóricos de Cícero, de Quintiliano e dos panegiristas imperiais, o surgimento de tratados novos e originais, o emprego dos progressos da filosofia de um modo geral e a amassa de idéias e assuntos oriundos da Antigüidade, permitindo e demandando o enriquecimento do pensamento individual, conferindo ao caráter da nova arte retórica seu acabamento. Tal caráter revela-se bastante distinto de indivíduo para indivíduo. Muitos discursos exalam uma verdadeira eloqüência, não fogem ao tema a que se propuseram. Nesta categoria incluem-se, os discursos de Pio II disponíveis. Inversamente, muitos oradores valiam-se de cada oportunidade para, ao lado de bajulações dirigidas a ouvintes nobres, produzir uma massa estéril de palavras e tópicos provenientes da Antigüidade. Alguns oradores exageravam na dose. A maior parte dos discursos de Filelfo compõe-se de um abominável emaranhado de citações dos clássicos e da Bíblia, com muito esforço descobrem-se em seus discursos e nos de outros, os poucos elementos históricos de valor para a época que efetivamente contêm.
Ao final do século XV, o gosto de uns e outros depurou-se de súbito, essencialmente por mérito dos florentinos. A partir de então, o recurso à citação é prudentemente moderado.
Como a maioria dos discursos era previamente elaborada nos púlpitos dos oradores, os manuscritos prestavam-se imediatamente a uma divulgação maior e à publicação. Os discursos dos grandes improvisadores, pelo contrário, precisavam-se ser estenografados. Nem todos os discursos foram escritos para serem proferidos.
A morte de Leão X (1521) e da devastação de Roma (1527) marcaram o princípio da decadência também da arte da retórica.
O TRATADO LATINO
O século que se libertou da Idade Média tinha necessidade, em várias questões específicas de cunho moral e filosófico, de uma especial mediação entre si próprio e a Antigüidade, esta lacuna foi preenchida pelos escritores de tratados e diálogos. Mais livre e variada que na narrativa histórica, no discurso ou nas cartas, a própria língua constrói seu fraseado, razão pela qual vários dos escritores italianos desse gênero são até hoje tidos como modelos no âmbito da prosa. Trata-se, porém, de abordá-los em seu conjunto, na qualidade de um gênero.
A partir daí, há uma depuração do gênero, sobretudo em língua italiana, que atinge com o Asolani, de Bembo, com a Vita sobria, de Luigi Cornaro, um status já inteiramente clássico. Também aqui atuou decisivamente a já iniciada compilação daqueles elementos da Antigüidade em coletâneas particularmente volumosas, agora impressas, deixando de constituir obstáculo aos escritores de tratados.
A ESCRITA DA HISTÓRIA
De maneira inevitável, o humanismo apoderou-se da escrita da história. Comparando-se essa sua história com as crônicas anteriores - ou seja, com obras tão magníficas, de tão rico colorido e tão cheias de vida. Ao lado destas, quão pálido e de graça convencional afigura-se tudo o que escrevem os humanistas e, seus sucessores imediatos e mais famosos na historiografia florentina. Deparamo-nos com a afirmação duvidosa de que a escrita da história precisaria, por meios estilísticos, excitar, estimular, abalar o leitor - como se ela pudesse ocupar o lugar da poesia. Somos, levados a nos perguntar se o desprezo pelas coisas modernas, que esses mesmos humanistas por vezes professam abertamente, não acabou por exercer sobre o tratamento que a elas dispensaram uma influência prejudicial. No século XVI, a nova e resplandecente série dos grandes historiadores italianos começa a escrever na língua materna.
Na realidade, a história da época saiu-se melhor quando escrita na língua local do que quando foi obrigada a latinizar-se. Era admissível que o interesse local da produção fosse sacrificado àquele mais geral dos eruditos. Os próprios florentinos escreveram em latim ao longo do século XV, não apenas em razão de seu pensamento humanístico, mas em razão da mais fácil divulgação de suas obras.
Finalmente, encontramos ainda histórias contemporâneas que, escritas em latim, equiparam-se inteiramente às melhores compostas em italiano.
Os relatos latinos dedicados ao passado concerniam, sobretudo à Antigüidade Clássica. O que menos se poderia procurar entre esses humanistas, porém, são trabalhos significativos acerca da história geral da Idade Média. A primeira obra importante desse gênero foi à crônica de Matteo Palmieri, que principia onde cessa Próspero de Aquitânia. Encontra-se no livro de Gibbon, uma história universal, repleta de estudos dedicados aos autores de cada século, tratando do início da Idade Média, até a morte de Frederico II. E ao mesmo encontrava-se ainda no estágio das conhecidas crônicas papais e imperiais. Assim estaríamos autorizados a dizer que somente o estudo da Antigüidade tornou possível o da Idade Média, na medida em que deu o primeiro passo no sentido de habituar as mentes ao interesse histórico objetivo. De todo modo, acrescentou-se a isso o fato de que, na Itália de então, a Idade Média pertencia já ao passado, e o de que a mente italiana pôde descobri-la por não mais trazê-la dentro de si. Nas tardes, instala-se um forte preconceito contra seus rebentos, e os humanistas fixam o momento de sua própria aparição como o início de uma nova era.
Desenvolveu-se uma crítica histórica em ralação à Idade Média, até porque o tratamento racional dispensado a todos os assuntos pelos humanistas tinha necessariamente de beneficiar esse período histórico. No século XV, tal tratamento impregna já as diversas histórias de cidades, na medida em que desaparecem as fábulas estéreis acerca da origem de Florença, Veneza, Milão etc., ao passo que as crônicas do Norte têm de arrastar consigo ainda por muito tempo aquelas tramas fantasiosas, na maioria dos casos desprovidas de valor poético, engendradas anda no século XIII.
Florença foi a estreita conexão das histórias locais com a glória. Após um grande triunfo oratório florentino, uma embaixada veneziana apressa-se em escrever para casa solicitando o envio de um orador, os venezianos necessitam também de uma história que possa suportar a comparação com as obras de Leonardo Aretino e Poggio.
Os grandes historiadores florentinos do princípio do século XVI são, homens distintos dos latinistas Giovio e Bembo. E quando escrevem, uma compulsão interior os obriga a dar seu testemunho em relação a homens e fatos e a explicar e justificar sua participação nos últimos.
Ao fazê-lo, mostram-se, em que pese toda a peculiaridade de seu estilo e linguagem, fortemente afetados pela Antigüidade, e inconcebíveis sem a influência desta. Já não são humanistas, mas passaram pela escola do humanismo e possuem em si mais do espírito dos historiadores antigos do que a maioria daqueles latinistas descendentes de Lívio: são cidadãos escrevendo para cidadãos, como o faziam os antigos.
A LATINIZAÇÃO GERAL DA CULTURA
A influência dos filósofos antigos sobre a cultura italiana afigura-se ora imensamente grande ora bastante secundária. O primeiro caso verifica-se particularmente quando se examina como as idéias de Aristóteles - principalmente as de sua Ética e Política, ambas defendidas logo cedo - tornaram-se bem comum de todos os italianos cultos, e como todo gênero de abstração esteve sob seu domínio. Inversamente, o último caso manifesta-se no efeito dogmático mínimo que os filósofos antigos, e mesmo os entusiasmados adeptos florentinos de Platão, exerceram sobre o espírito de nação. O que se assemelha a um tal efeito é, em geral, apenas uma manifestação da cultura como um todo, uma conseqüência do desenvolvimento específico da mente italiana. Na absoluta maioria dos casos, porém, não se trata sequer da cultura como um todo, mas apenas manifestações isoladas de pessoas ou de círculos eruditos - e mesmo assim há que se diferenciar sempre a verdadeira assimilação de doutrinas antigas da mera inércia do modismo. Para muitos, de fato, a Antigüidade não representou mais do que um modismo, mesmo entre aqueles que adquiriram considerável erudição nessa matéria.
Não obstante, nem tudo o que para o nosso século parece afetação necessariamente o foi à época. O uso de nomes de batismo gregos e romanos, por exemplo, não deixa de ser mais belo e respeitável do que a prática de hoje em retirá-los (sobretudo os femininos) dos romances. Tão logo o entusiasmo pelo mundo antigo torno-se maior do que pelos santos, fez-se normal e natural que uma família nobre batizasse seus filhos com os nomes de Agamenom, Aquiles e Tydeus; ou que um pintor chamasse a seu filho Apeles e a sua filha Minerva e assim por diante. Decerto, é igualmente justificável que, pretendendo livrar-se de um nome de família, o indivíduo o substituísse por outro, melodioso e antigo, ou, sobretudo quando, também nome de santo, ele se tornava incômodo. Assim é que Filippo da San Gimignano chamava a si próprio de Calímaco. Aquele que, menosprezado e insultado pela própria família, fazia fortuna como erudito no estrangeiro, podia, orgulhoso, rebatizar-se Julius Pomponius Laetus, ainda que fosse um Lanseveriano. Também a pura e simples tradução de um nome para o latim ou grego (que, na Alemanha, tornou-se hábito quase generalizado) é perdoável a uma geração que falava e escrevia em latim e que necessitava de nomes não apenas declináveis, como também apropriados à prosa e ao verso. Censurável e amiúde ridículo era, isso sim, a mudança parcial de um nome, tanto de batismo quanto de família, com o intuito de conferir-lhe um tom clássico e um novo significado. Assim, Giovanni transformou-se em Jovanius ou Janus, Pietro em Pierus (...). Ariosto, que se manifesta tão sarcasticamente a esse respeito, viveu ainda o bastante para ver crianças batizadas com os nomes de seus heróis e heroínas.
Tampouco há que se julgar com demasiado rigor as denominações antigas atribuídas a cargos, funções, cerimônias etc. pelos escritores latinos. Enquanto estes se deram por satisfeitos com um latim fácil e fluente - como ocorreu com os escritores, digamos, de Petroarca a Enéias Sílvio - tal prática não se mostrou extravagante, tornando-se, porém, inevitável quando se passou a almejar um latim absolutamente puro - o latim de Cícero, sobretudo. A partir desse momento, os elementos modernos passaram a não mais conformar-se à totalidade de estilo, a não ser os que rebatizassem artificialmente.
Ao longo de dois séculos inteiros, os humanistas agiram como se o latim fosse e devesse permanecer a única língua digna de se escrita. Poggio lamenta que Dante tenha composto seu grandioso poema em italiano, e é sabido que o próprio Dante, na verdade, tentara antes o latim, tendo escrito o início do "Inferno" em hexâmetros. Todo o destino da poesia italiana estivesse vinculado ao fato de ele não ter levado adiante esse seu intento. Mesmo Petrarca, no entanto, depositava maior confiança em suas poesias latinas do que em seus sonetos e canzoni, e a exigência do compor em latim estendeu-se ainda a Ariosto. Jamais houve pressão mais forte do que essa, em matéria de literatura; em grande parte, porém, a poesia logrou safar-se dela, de modo que podemos, agora, sem demasiado otimismo, afirmar que foi bom que a poesia italiana dispusesse de ambos os meios de expressão, pois seus feitos em ambas as línguas foram primorosos e singulares, sendo possível perceber por que neste ou naquele poema optou-se pelo italiano ou pelo latim. Talvez o mesmo se possa dizer em relação à prosa. A posição e a forma da cultura italiana no mundo decorreram pelo fato de que certos assuntos tenham sido - urbi et orbi - tratados em latim, ao passo que a prosa italiana esteve em melhores mãos justamente quando escrita por aqueles os quais não escrevem em latim custou uma luta interior.
Desde o século XIV, Cícero era incontestavelmente tido como a fonte mais pura da prosa. Tal não se deu de forma alguma a uma mera e abstrata convicção do poder de suas palavras, de seu fraseado e de sua maneira de compor, mas antes ao fato de que a amabilidade do epistológrafo, o brilho do orador, a clareza e serenidade de sua exposição filosófica encontram total ressonância no espírito italiano. Posteriormente à época de Petrarca, Cícero forneceu, em um primeiro momento, o modelo quase exclusivo para a epistolografia, o mesmo acontecendo em seguida, em relação aos demais gêneros, executando-se o narrativo. O verdadeiro ciceronianismo, entretanto, que não se permitia escrever uma única frase não justificável a partir dos escritos do mestre, tem início somente por volta do final do século XV, depois que os escritos sobre gramática de Lorenzo Valla já haviam produzido seus efeitos sobre toda a Itália e depois que as próprias asserções dos historiadores da literatura romanos já haviam sido verificadas e comparadas. Só então se começa a distinguir melhor e com a máxima precisão as nuances estilísticas na prosa dos antigos, chegando-se sempre e com uma certeza consoladora à conclusão de que Cícero, e somente ele, constituiu o modelo absoluto - ou "aquela imorredoura e quase divina era de Cícero", quando se desejava abranger todos os gêneros.
Mesmo os admiradores de Cícero não eram, aliás, todos parciais a ponto de pretenderem impô-lo como a única fonte a inspirar a língua. Ainda no século XV, Poliziano e Ermolao Bárbaro ousam buscar conscientemente uma latinidade própria, individual, apoiados, naturalmente, numa "vasta, transbordante" erudição - objetivo perseguido também por aquele que nos relata esse fato: Paolo Giovio. Este, pela primeira vez, e à custa de grande esforço, registrou em latim uma série de idéias modernas, sobretudo de natureza estética - nem sempre com êxito, mas por vezes com notável energia e elegância. Suas caracterizações em latim dos grandes pintores e escultores de então contém, lado a lado, as observações mais inteligentes e as mais desafortunadas. O próprio Leão X, que via sua glória no fato "ut língua latina nostro pontificatu dicatur facta auctior" [que seja dito que a língua latina foi enriquecida durante nosso pontificado], tendia para uma latinidade liberal, não exclusiva, como não podia ser em uma natureza amante dos prazeres como a sua. Bastava-lhe que o que tivesse de ouvir ou ler lhe parecesse verdadeiramente latim, vivo e elegante. Por fim, Cícero não ofereceu modelo que, nesse aspecto, foi-se obrigado a reverenciar outros deuses paralelamente a ele. A lacuna foi preenchida pelas encenações relativamente freqüentes, dentro e fora de Roma, das comédias de Plauto e Terêncio, que propiciavam aos atores um exercício incomparável em matéria do latim como língua cotidiana. Para concluir, é lícito mencionar aqui um paralelo do ciceronianismo no domínio da arte: o vitruvianismo dos arquitetos. Também aí manifesta-se, aliás, a lei geral do Renascimento, segundo a qual o movimento na área da cultura precede sempre um movimento análogo no domínio da arte.
A POESIA NEOLATINA
" O maior orgulho dos humanistas é a poesia neolatina, pois esta nos auxilia a caracterizar o humanismo."
"Havia uma predisposição ao seu favor, tornando-se admirável pela Antigüidade, gerando a imitação." (...) Suas mais belas obras não foram criadas para desafiar uma crítica absoluta qualquer, mas para alegrar o poeta e a muitos milhares de contemporâneos seus.
Menor êxito, tiveram as epopéias retiradas das histórias e sagas da Antigüidade.
Hoje, o poema em si é, decerto totalmente ilegível. No tocante a outros temas históricos, temos de remeter o leitor para as diversas histórias da literatura existentes.
Mais rica e fértil foi a poesia que retomou os Mitos da Antigüidade, preenchendo-lhes as lacunas poéticas. (...) Os mitos novos inventados eram deuses, ninfas e gênios primevos; além de pastores.
Encontramos ainda extensos poemas épicos, de conteúdo bíblico ou eclesiástico.
Pode-se destacar os autores: o bom Battista Mantovano e Sarrazano, que nem sempre almejavam uma promoção dentro da Igreja ou a obtenção de favor papal.
Alguns poemas épicos mais breves compostos por mestres célebres provocam, inconscientemente, uma impressão indescritivelmente cômica, em função da presença exagerada do elemento mitológico. (...) É sabido, todas as contendas e cerimônias foram cantadas em verso, inclusive pelos humanistas alemães da época da Reforma. Surge a poesia didática.
No século XVI, esse gênero toma impulso, cantando em hexâmetros latinos a feitura do ouro, jogo de xadrez, a criação do bicho-da-seda, a astronomia, a doença venérea e temas similares.
Costuma-se, hoje, condenar sem ler as obras desse gênero.
Uma dessas obras didáticas tem sido, ainda hoje, ocasionalmente reimpressa. Trata-se do Zodíaco da vida, de Marcellus Palingenius. Nela, o autor vincula questões elevadas como Deus, a virtude e a imortalidade, a discussão de muitos tópicos da vida material.
No essencial, conteúdo, sua poesia ultrapassa os domínios do Renascimento, assim como nela, em conformidade com a seriedade de seu propósito didático, a alegoria suplanta a mitologia.
Várias manifestações literárias marcaram este período. Havia uma preocupação com a erudição. Esta produção erudita buscava glorificar os "ilustres".
Temos também na arquitetura e na decoração a presença de inscrições. Essa valorização pela poesia latina adotada pelos italianos vem de uma necessidade histórica cultural.
A QUEDA DOS HUMANISTAS NO SÉCULO XVI
Desde o princípio do século XVI várias e brilhantes gerações de poetas-filólogos haviam impregnado a Itália e o mundo com seu culto à Antigüidade, determinado em sua essência a cultura e a educação, amiúde tomando a dianteira nas questões referentes ao Estado e reproduzindo o melhor possível a literatura antiga(...).
Era, pois, sob tais circunstâncias que escreviam, discursavam e descreviam uns aos outros. Somente as obras de Poggio contêm já sujeira suficiente para suscitar o preconceito contra toda a classe.(...) As muitas poesias latinas obscenas ou, para citar um exemplo, o escárnio voltado contra a própria família, como encontramos no diálogo de Pontano intitulado Antonius, cuidaram do restante, no que se refere ao descrédito generalizado da classe. O século XVI conhecia todos esses testemunhos, e, além disso, cansara-se do tipo dos humanistas. Estes tiveram de pagar pelo que haviam cometido e, mais ainda, pelo excesso de autoridade que lhes fora até então atribuído.(...)
Das censuras que se combinaram para compor esse quadro de antipatia geral (...). Uma tendência definida e reconhecível à austeridade moral e à religiosidade vivia ainda, e prosseguiu vivendo, em muitos filólogos: condenar toda a sua classe revelaria um conhecimento muito pequeno da época (...).
Três fatores explicam e atenuam, talvez, sua culpa: os desmedidos e cintilantes mimos com que eram agraciados, quando a sorte lhes era favorável; a ausência de garantias no tocante à vida material, de tal modo que luxo e miséria alteravam-se rapidamente, dependendo do humor dos soberanos e da maldade dos adversários; e, finalmente a desvirtuada influência da Antigüidade (...).
A carreira dos humanistas era, em geral, de tal sorte que só as naturezas moralmente mais fortes eram capazes de enfrentá-la sem prejuízo para si próprios. O prejuízo para si próprias. O primeiro perigo provinha, por vezes, dos pais, que educam o filho, amiúde de um desenvolvimento extraordinário precoce, para ser uma criança-prodígio, visando sua futura posição naquela casta á época suprema (...). Também para o jovem ambicioso, a glória e o brilho dos humanistas constituíam uma perigosa tentação (...). Precipita-se assim, uma vida extenuante e cheia de vicissitudes, na qual se sucedem confusamente exaustivos estudos, o trabalho como preceptor, secretário e catedrático, o serviço aos príncipes, inimizados e perigos mortais a admiração entusiástica e o cobrir-se de escárnio, a opulência e a miséria (...). O mal maior, contudo, era o fato de que uma residência fixa era quase seus membros viam-se constantemente obrigados a mudar de domicílio ou imbuídos de uma disposição que os impedia de sentir-se por muito tempo onde quer que fosse (...).
O humanista do Renascimento, pelo contrário, tinha de carregar consigo uma grande erudição e a capacidade de adaptar-se a um turbilhão de situações e ocupação as mais diversas (...).
Se, porém, a história cultural tem o dever de procurar manifestações nas quais, ao lado da acusação, prevalece a simpatia humana, então nenhuma fonte é comparável à obra de Pierio Valeriano. Sobre o infortúnio dos eruditos (...). Por meio delas, ficamos conhecendo pessoas que, em tempos agitados, perdem primeiro seus rendimentos e, depois, suas posições; pessoas que, entre dois empregos, acabam sem nenhum; mesquinhos misantropos que carregam seu dinheiro sempre consigo, costurando à roupa, e que, uma vez dele roubados, morrem loucos; e pessoas que aceitam benefícios da Igreja e definham em melancólica saudade da liberdade perdida. Lemos, ainda lamento do autor pela morte prematura de tantos, pela febre ou pela peste (...).
A imagem do erudito feliz revela-se na figura de fra Urbano Valeriano (...) o que o diferencia dos humanistas? Estes tem uma vontade própria maior, uma subjetividade mais liberta do que podem empregar para serem felizes; o frade mendicante, em contrapartida, vivendo num monastério desde a infância jamais desfrutou ao bel-prazer da comida ou do sono e, por isso, encarava a privação como privação e nada mais; por força desse hábito levou, em meio a todas as dificuldades, a mais tranqüila vida interior, impressionando seus ouvintes mais por isso do que por seus conhecimentos de grego(...).
Leto introduzia as encenações de peças antigas em Roma, principalmente de Plauto. Além disso, celebrava anualmente o dia da fundação da cidade com uma festa na qual seus amigos e discípulos proferiam discursos e recitavam poemas. Desses dois eventos centrais originou-se - e seguiu existindo, posteriormente - o que se denominou a Academia Romana. Esta era tão somente uma associação livre de indivíduos, não vincula a qualquer instituição física (...) essa academia durou até a devastação de Roma (...) Um bom número de academias semelhantes surgiu e desapareceu em diversas cidades, conforme o permitiram o número e a importância dos humanistas nelas domiciliados e o patrocínio dos ricos e grandes (...)
Por volta da metade do séc. XVI, essas associações parecem ter passado por uma transformação completa. Os humanistas, também em outras esferas desalojados de sua posição de comando e alvo da suspeita da nascente Contra-Reforma, perderam a direção das academias, e também aqui a poesia italiana toma o lugar da latina. Logo, todas as cidades de alguma importância têm sua academia, com os nomes mais bizarros possíveis e com recursos próprios, compostos de contribuições e legados. Além das recitações de versos, essas academias herdaram de suas antecessoras latinas o banquete periódico e a encenação de dramas, em parte pelos próprios acadêmicos, em parte por jovens sob seus cuidados - e, não por muito tempo depois, por atores pagos. O destino do teatro italiano e, posteriormente, também da ópera esteve muito tempo nas mãos dessas associações.
Imagem 1: Santo Augusto - retrata a aventura
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